Hoje eu (Nino) vou contar uma história que começou há muito tempo atrás. Pouco depois de alugarmos o apartamento aqui em Roma e ajeitarmos a papelada pra Faeca morar legalmente na Itália, nos dirigimos ao comune para continuar com as burocracias necessárias. Quando digo comune, me refiro à repartição da prefeitura para os moradores do nosso bairro.
Chegando no comune, descobrimos que o que precisávamos fazer era a mudança de residência, do Brasil para Roma. Toda vez que alguém muda de endereço aqui na Itália, deve ir numa repartição da prefeitura informar essa mudança, pois eles têm todas essas informações em um banco de dados. Eu, como sou italiano, já estava em um desses bancos de dados. Felizmente estava no banco de dados de Roma, já que os papéis da minha cidadania estão aqui.
Então a senhora que nos atendeu no comune pegou meu passaporte e foi procurar meu nome lá no computador... e não achou. Me perguntou como eu tinha conseguido a cidadania, de onde era a minha família, etc. Eu expliquei que mesmo assim os meus papéis estavam em Roma, então meu nome deveria estar ali.
Ela procurou melhor, e até achou meus pais, mas não me achou... Foi aí que a minha amada esposa se lembrou que quando chegavam correspondências no Brasil pra gente votar pra presidente da Itália, a minha vinha com o nome de "Vitalino Cesca", e não "Vitalino Cesca Filho". Na época eu disse pra Faeca que isso não era nada, que só cortaram uma parte do nome pra mandar a carta.
Mas é não é que no tal banco de dados o meu nome tava mesmo como "Vitalino Cesca"? E mesmo assim, no meu passaporte italiano estava certo o nome... Então o pessoal ali do comune disse pra eu ir no Anagrafe Centrale, que é onde cuidam desse banco de dados e onde fica a papelada referente a ele, como certidões de nascimento. Ah, claro que o tal Anagrafe Centrale é bem longe de casa, né.
Fomos pra lá e nos disseram que eu precisava pedir ali mesmo (mas em outra repartição) uma cópia da minha certidão de nascimento italiana. Pedi e 15 dias depois voltei lá pra pegar. E na tal certidão realmente estava "Vitalino Cesca" e sem nenhum comentário a mais. Lá me disseram que na itália as pessoas só podem ter um sobrenome, o sobrenome do pai. Por isso que aqui ninguém tem o mesmo nome do pai, e por isso também que me tiraram o "Filho"...
Depois de algumas pequenas discussões ao estilo italiano, disseram que eu precisava ir na prefeitura e entrar com processo de mudança de sobrenome. É um processo que passa pelo ministro de sei-la-o-quê e demora entre seis meses e um ano e meio!
Vocês têm noção disso? Alguém escreveu meu nome errado na minha certidão de nascimento e agora eu tenho que entrar com um processo de mudança de nome e que demora 1 ano e meio! Eles que deveriam se virar pra consertar a cagada que fizeram!
Mas claro que não é bem assim... Fui lá na prefeitura (não era longe dali), expliquei o caso e vi que não tinha todos os papéis necessários. Eu precisava de uma carta do consulado brasileiro que atestava que o "Vitalino Cesca" do banco de dados e o "Vitalino Cesca Filho" do passaporte eram na verdade a mesma pessoa. Essa carta devia também explicar o sentido da palavra "Filho" no meu nome.
Claro que não deu pra fazer tudo no mesmo dia, tanto que esses órgãos têm horários de atendimento bem restritos. E como sempre demorava até chegar lá, eu já pegava o fim do expediente. Entre uma ida e outra, eu passava de novo no comune (que fica mais perto de casa) e falava do andamento do processo. Tinha duas mulheres que já conheciam a gente (quando não precisava ir muito longe, a Faeca me acompanhava) e tentavam sempre ajudar. Quando falamos pra elas que eu teria que mudar o sobrenome, começaram as duas a discutir entre si, pra ver quem tinha razão de o que eu deveria fazer:
- Não, ele não tem que mudar o sobrenome, ele tem que ir no anagrafe centrale!
- Mas ele foi lá e disseram pra ele ir na prefeitura mudar o sobrenome!
- Não, mas ele tinha que explicar que no Brasil o nome dele é esse, e mudaram aqui e...
- Mas ele falou isso tudo! Você falou, né?
- Não, não interessa! Isso não é um caso de mudança de nome, e sim de erro de transcrição! Foi um erro cometido por um escrivão, ele não precisa ficar indo na prefeitura...
- Tá, mas a gente tem que fazer a residência dele, sem residência ele não consegue mudar o nome.
- Mas eu tô te dizendo que não é pra ele mudar o nome!!
É, faltou dizer pra vocês que pra mudar o nome eu precisava ter a minha residência certinha no banco de dados. Pra qualquer coisa aqui na itália tu tem que ter a residência em dia. E pra mudar a residência, eu precisava estar com o nome certo. Então depois de brigarem bastante as mulheres decidiram fazer a minha residência com o nome errado mesmo, e depois eu trocaria. Mas pra isso precisava da bendita carta do consulado dizendo que aquele cara na ficha era eu mesmo.
Bom, outro dia fui láá no consulado, peguei o tal papel. Foi um grande avanço, agora eu tinha uma carta dizendo que não importa se diz "Cesca" ou "Cesca Filho", era sempre eu. Se eu quisesse, eu podia ficar nisso, e ficar pelo resto do tempo carregando documentos com nomes errados e esse papel junto com eles.
Bom, mas eu queria era ajeitar tudo. Fui ainda no anagrafe centrale falar que aquilo era um erro de transcrição e que eu não precisava mudar o meu sobrenome. Foi uma pessoa diferente que me atendeu. Ficou em dúvida e resolveu chamar o chefe (que é o que tinha me atendido na primeira vez). "Mas tu de novo aqui? Eu te disse que tu tem que ir na prefeitura!". Aí eu expliquei o negócio de erro de transcrição e o cara me disse que não importava se tinha sido erro deles ou não, o procedimento era o mesmo: mudar de sobrenome. Putz...
Bom, pelo menos com o papel do consulado consegui fazer a residência (com o nome errado). Na verdade, encaminhar a residência, já que vem um policial na casa verificar se eu realmente moro lá. Então alguns meses após o pedido a residência fica pronta. Mas tudo bem, com o canhoto do pedido eu poderia continuar o processo de mudança de nome. Claro que mais uma vez as mulheres do comune discutiram mais um pouco, questionando a competência do pessoal do anagrafe centrale e lamentando o trabalho que eu tava passando com tudo isso.
Mais adiante fui na prefeitura iniciar o processo de mudança de sobrenome, anexando os documentos que faltavam. Mais ou menos um mês depois veio uma carta pra mim dizendo que eu tinha que ir na polícia prestar um depoimento, explicando o motivo da mudança de sobrenome. Fui no endereço indicado e lá tudo correu bem. Mais uns meses e chegou em casa a cópia do processo que eu tinha iniciado, dizendo que eu tinha que esperar mais não sei quantos meses pra chegar até o tal ministro.
Nesse meio tempo, recebi uma ligação de uma das mulheres do comune, dizendo pra eu passar lá. Lá ela me explicou que ela descobriu uma circular que explica que quando o nome de alguém é alterado na certidão de nascimento pra se encaixar nas normas, a pessoa afetada pode pedir a correção diretamente no anagrafe centrale e que ele deve ser atendido prontamente. Em outras palavras, o procedimento para o caso de erro de trasncrição é direto no anagrafe centrale, e não mudando o nome na prefeitura e esperando um ano e meio! A criatura do anagrafe centrale tinha me informado errado!
Feliz da vida, levei a circular lá com meus documentos (inclusive a cartinha do consulado). Claro que a criatura primeiro pediu de novo uma cópia da certidão de nascimento. Fiz o pedido no outro guichê, esperei 15 dias e retornei. Dessa vez foi uma mulher que me atendeu, e disse que eu tinha que fazer isso na prefeitura. Aí eu repeti da circular e me esforcei pra explicar que nesse caso não precisava. Ela respondeu "Eu conheço essa circular, eu sei o que ela diz. Mas não é o teu caso, pois senão estaria escrito aqui na certidão de nascimento que na tradução da certidão original do Brasil constava "Vitalino Cesca Filho" e que foi modificado em vista da lei tal-tal-tal". Aí eu fiquei sem palavras. Mas insisti: "Mas a tradução veio certa, só que mudaram e não escreveram aqui! Onde estão os papéis que vieram do Brasil?".
Ah, convenhamos. O meu nome pula de "Cesca Filho" pra "Cesca" em um país em que as pessoas não têm dois sobrenomes e vocês acham que quem errou foi a pessoa que traduziu minha certidão pro italiano? Claro que não. Mas não é que a mulher insistia e se pôs a discutir comigo, dizendo que tinha certeza que os papéis tinham vindo errados do Brasil. Mas percebendo que eu queria tirar a história a limpo, me disse o que fazer. Segundo ela, esses papéis, por serem de antes do ano de mil-novecentos-e-antigamente, não estão no anagrafe centrale, e sim na prefeitura. Eu precisaria ir lá entrar com um pedido de acesso aos anexos à certidão, que os papéis iam chegar ali pra eles. Aí eles me ligariam pra informar onde estava o erro.
Fui de novo na tal prefeitura e pra minha surpresa a mulher disse que esses papéis estavam no anagrafe centrale. "Mas eu acabei de vir de lá e me mandaram pra cá!". A mulher então disse que em não sei quantos anos de trabalho, nunca tinha ouvido isso, mas pra não me mandar de volta pra lá começou a ligar pra Deus e todo mundo. Até que na quinta ligação falou com alguém super entendido que confirmou que antigamente os papéis ficavam na prefeitura e que só os não tão antigos foram pro anagrafe centrale. Ótimo, então foi feito o pedido e era só esperar.
Uns dias depois me telefonaram do anagrafe dizendo com a maior cara de pau: "O senhor pode vir aqui pra procedermos com a sua mudança de sobrenome". Nem uma palavra do tipo "você tinha razão" ou "estávamos enganados" ou "me desculpe". Fomos lá e sem muitas palavras a mesma mulher fez o pedido de correção do sobrenome. Ficaria pronto em um ou dois meses e ela aconselhou que eu cancelasse o processo de mudança de sobrenome na prefeitura.
Aeeeeeeee!!! Finalmente!! E se vocês estão cansados de ler esta história sem fim, problema de vocês! Eu cansei muito mais troteando de um lado pro outro, passando vinte vezes em frente à Piazza Venezia e ao Coliseu, ou pela Piazza Navona. Agora me aguentem que a história não terminou!
Pois é, corrigido o meu nome, a gente precisava providenciar uma versão italiana da nossa certidão de casamento, pois no tal banco de dados eu ainda estava como solteiro. E a Faeca só poderia começar o processo de residência dela depois que estivesse cadastrada como minha esposa. E tudo que tínhamos era uma certidão brasileira grampeada com uma tradução oficial e carimbada pelo consulado. Então nessa mesma visita ao anagrafe, fizemos o pedido da certidão de casamento italiana. Felizmente, todos os documentos iam vir prontos pro comune, que fica bem mais perto de casa. Porém precisamos deixar a certidão original, com sua tradução. Deu medo de deixar um documento original assim importante com eles, já que a estada da Faeca na Itália é possível porque ela é casada com um italiano. Mas ficamos tranqüilos, já que ela já tem o permesso di soggiorno, que funciona como um visto.
A essa altura já estava na hora de tirarmos nossas férias no Brasil. Quando retornamos a Roma, passamos no comune e o meu nome estava lá, bem certinho. E, para a nossa surpresa, a tal certidão de casamento é metade escrita a máquina, e metade a mão. Estranho... E pra piorar, o meu nome na certidão era "Vitaliano", o nome da Faeca tava sem o "Cesca" e a nacionalidade dela tava como "estrangeira" (???). Bom, parece que fizeram sem a mínima vontade essa tal certidão. As nossas conhecidas lá do comune ficaram mais indigandas que a gente! Bom, fizemos o pedido de correção (ali mesmo). Mas felizmente já pudemos fazer a residência da Faeca e mais uma vez um policial foi nos visitar para verificar se era verdade.
A história realmente (quase) se encerrou esses dias, quando resolvemos ir no comune pegar a certidão e fazer a tão famosa carteira de identidade. Aqui a carteira de identidade traz junto o endereço e, por isso, a residência precisa estar confirmada antes. Aproveitamos pra pegar a certidão de casamento que, dessa vez, não estava escrita a mão e não continha nenhum erro. E as nossas fichas no banco de dados estavam todas certinhas. :) ufa! Agora estou de carteira de identidade, e com o nome certo!!!
Eu disse que a história quase se encerrou porque a Faeca não conseguiu fazer a carteira de identidade dela, pois o processo de residência ainda não foi registrado no sistema (pra estrangeiros demora mais...). Mas isso é só uma questão de tempo.
Não foi fácil resolver tudo isso, não só por ter que andar de um lado pra outro, mas também porque é difícil tratar de burocracia em outra língua, principalmente num lugar como a Itália, famosa pela burocracia e pelo espírito esquentado do seu povo.
Que novela! Mais burocrático que aqui. Mas que bom que deu tudo certo, e que o que ainda não deu certo já está encaminhado. Saudades de vocês, abraços!
ResponderExcluirBah, estou exausta!!! Que viagem isto tudo, e que exercicio pra auto-confianca, pra fluencia do italiano, pra paciencia e pra persistencia. Nota 10 pra voces! :P E uma inspiracao pra eu resolver o meu nome... ai ai ai enfrentar burocracia em outra lingua e em outro pais é muito muito chato. So entende quem ja fez.
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